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08 fevereiro, 2014

O que Raquel Sheherazade e todas as guerras têm em comum

(Foto: Reprodução)

A criação de “subgrupos” não diz respeito somente ao maior conflito bélico que já existiu, mas sim a todas as guerras e está presente na sociedade atual(...)


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Por Diogo de Souza*

Durante a Segunda Guerra Mundial, soldados nazistas recusaram-se a matar ou prejudicar judeus. O motivo? Não sabiam o que fazer quando estes apresentavam ascendência alemã. Fato curioso, pois naquele momento estava em execução o perverso projeto Solução Final: câmaras de gás, assassinatos em massa, nenhum alimento aos prisioneiros nos campos de concentração, visando exterminar todos de etnia judaica. O elemento ético que supostamente justificava aquilo tudo desapareceu, o outro, o meu inimigo não tinha mais a característica que suscitava meu ódio, não era mais alguém de raça inferior, isso fez com que o véu de fúria sumisse e passaram a identificar-se, a reconhecer-se com a vítima, a vê-la como igual. Essa situação ilustra bem o significado da palavra racismo, em seu sentido mais amplo, que é: instrumento de restrição ou negação de direitos a minorias ou grupos pelo simples fato de apresentarem alguma qualidade, sendo tal item o suficiente para aplicar punições e exclusões que excedem até mesmo às leis vigentes. Logo, três dados precisam estar presentes para que haja a diferenciação social por raças: o atributo de certo grupo por si só é razão para determinar um tratamento especial, mais negativo; não é uma ocasionalidade, é algo sistemático, uma ideologia fortemente inserida na sociedade, vista como natural, afastando critérios racionais de interpretação, e este aspecto é o único a ser considerado como indutor de comportamentos e há um desejo de ver algum dano atingir aquele conjunto de indivíduos. A criação de “subgrupos” não diz respeito somente ao maior conflito bélico que já existiu, mas sim a todas as guerras e está presente na sociedade atual, por exemplo, um caso ocorrido esta semana reúne os três elementos citados: um jovem foi acorrentado pelo pescoço e fotografado nu por moradores de um bairro nobre do Rio de Janeiro, estavam revoltados por ele ter praticado um furto. Dessa forma, pretendiam humilhá-lo e intimá-lo, a não roubar novamente, fato aplaudido e louvado em horário nobre pela apresentadora Rachel Sheherazade, em seu comentário adote um bandido, no jornal do SBT. Segundo ela está situação era “compreensível”, já “que o Estado é omisso”. 

Não deixando de exigir punição severa conforme a legislação, tampouco combatendo o direito de autodefesa e a indignação contra a injustiça que envolve o caso, legitimamente realizados por estes populares, é preciso analisar a concordância de tantos com os excessos cometidos. Pois, qual critério se torna natural a imposição de penas além das previstas em lei? O que torna o tratamento degradante contra alguém algo aceitável?

  Por razões históricas, associamos racismo diretamente ao preconceito e atos infames sofridos pelos negros e utilizamos a palavra discriminação para nos referirmos às outras ofensas contra as pessoas, devido a certo atributo que apresentam. Porém, é um erro restringir o significado de racismo dessa maneira, pois este é um fenômeno que com severidade busca integrar à força ou eliminar os “desajustados” sociais, isto é, é feita uma atribuição de qualidades a pessoas, seja envolvendo sua origem social ou pátria, sua cor de pele, sua religião, sua opção sexual ou outra característica, que fundamenta punições, sendo criado, desta forma, um conjunto de indivíduos “semicidadãos”, ou seja, com apenas alguns direitos em relação aos demais. É uma forma de segregar aplicada de modo sistemático, está enraizada na sociedade de tal modo que pode ser utilizada como discurso oficial, e não raramente, é tida como um posicionamento justificador, redentor. Este é o conceito adequado para este termo e precisa ser compreendido para combater as manifestações ou indicações que nos levam a praticar tal comportamento, exemplificando: o menino acorrentado era bandido. Pra muitos, bandido bom é bandido morto, logo apresenta algo que dá base a uma exceção no tratamento que as leis definem, posso tratar o outro como um inferior que não merece ou pode ter os direitos que os iguais (os que não apresentam tal qualidade) possuem.  Uma coisa era a prisão, devida, acertada e admirável pelos populares, todavia, a concordância com o vexame como forma de intimidar realizado pela falta de oposição a isso na fala da apresentadora Sheherazade e abertamente defendida em centenas de comentários na internet, pelo criaram uma forma de sanção que excede nossas leis.

O fato de biologicamente não existirem raças, não impede que posicionamentos racistas sejam utilizados social ou ideologicamente, tal como ocorre durante guerras. O Estudo Comportamental da Obediência, feito por Stanley Milgram, ajuda a esclarecer esta tática. Na universidade de Yale, nos Estados Unidos, Milgram conduziu testes psicológicos para investigar como pessoas comuns e sem traços violentos poderiam ser capazes de atos atrozes. As seguintes observações resumem os resultados obtidos:
“No segundo semestre de 1961, 40 pessoas aceitaram participar de uma pesquisa e aplicaram choques quase mortais em completos desconhecidos tão somente porque um professor - outro completo desconhecido para eles - deu ordens para que continuassem. A aparente sessão de tortura era, na verdade, um experimento científico, e os choques, encenação de atores. Os experimentos de obediência de Stanley Milgram completam 50 anos em 2011 e continuam relevantes no estudo da natureza humana.” *

“Segundo o professor da Universidade de Yale, pessoas comuns tinham decidido administrar perigosos choques elétricos em um indivíduo inocente simplesmente porque um homem que se dizia cientista as havia convencido de que a punição era importante para a realização de um experimento.”  **

Os verdadeiros objetivos do Experimento de Milgram eram:

1. ver em que momento o voluntário manifestaria pela primeira vez seu desejo de encerrar sua participação na pesquisa; e

2. ao ser submetido à autoridade do Pesquisador, verificar qual o seu limite final.

Mesmo que tudo o mais fosse falso, a angústia do voluntário era real. Tanto a que sentia durante os choques que aplicava quanto aquela ao perceber até onde foi. Ou até onde teria ido, pois achava que os choques eram verdadeiros. Lauren Slater conta em seu livro (Opening Skinner's Box: Great Psychological Experiments of the Twentieth Century) que conseguiu contactar um dos participantes do experimento original. Suas lembranças do episódio compunham um obscuro pesadelo.

Por isso a guerra invoca um discurso racista, para que com a diferenciação das pessoas exista um fator que torne “aceitável” o ódio irrestrito ao rival, sem jamais hesitar, sem piedade, é preciso que o inimigo seja visto como um ser de outra espécie (uma digna de desprezo), com uma qualidade inaceitável, que afaste toda reflexão sobre o ato praticado e recaia a um simplismo de punição elevada, enfim, é preciso exterminá-lo para extinguir a qualidade que odeio. Para justificar seus feitos, um sistema de convencimento é criado para induzir as pessoas a aceitarem práticas brutais, ausente de julgamentos éticos presentes em tempos pacíficos.

  Em seu comentário Raquel Sheherazade não faz nenhuma ressalva ou crítica ao tratamento degradante aplicado contra o adolescente, tal situação “era compreensível” pois este era infrator, estabeleceu negação de direitos, criou um subgrupo. Tal erro, não corrigido nem na explicação: Vídeo em que apenas fez generalizações como “sou ferrenha crítica da violência”, e somente  “não defendi a atitude dos justiceiros”, (a atitude citada era, “a barbárie, a violência pela violência”). Porém, a gafe absurda de utilizar a frase: “defendo as pessoas de bem”, tornou o vídeo simples ensaio de retratação, pois retoma a divisão sem fundamento entre pessoas. Dos três minutos do quase esclarecimento, os jornalistas do programa dedicam um, só para o argumento furado de: “a opinião pessoal de um jornalista é diferente da visão da emissora”, como se as emissoras estivessem desvinculadas da programação e conteúdo que transmitem. Um esforço realizado para evitar processos na justiça, porém, praticamente nada foi realizado contra o grande problema da questão, pois pensemos bem, estariam sujeitos as mesmas exposições vexatórias sonegadores fiscais? Financiadores de caixa 2 de campanhas políticas? Praticantes de crimes ambientais, dentre outros? Ou a situação somente foi tolerada e elogiada por tantos porque envolvia um jovem negro, pobre, que praticou pequenos delitos? Infelizmente em nosso país, isso é visto como natural, é algo enraizado, é adotado como obra redentora, exclui direitos e persegue diversas minorias, usando as mesmas ideologias que é essencial condição para a ocorrência de guerras: a de motivar o ódio ao semelhante como alguém digno de morte ou humilhações, por apresentarem certa característica. Infelizmente, pelo calor do momento ou o que quer que seja, Sheherazade, ao ser omissa, acabou estimulando posicionamentos semelhantes, reforçou preconceitos, e quando teve a oportunidade de corrigir-se, não o fez considerando os direitos do garoto, mas sim, as necessidades da emissora.  Esta situação, infelizmente, revela o quanto nosso país é racista e pior, expôs e comemorou isso na TV, em pleno horário nobre. Até porque nossa sociedade, nas palavras da Raquel- “adota bandidos”, desde que apresentem certos critérios, não é mesmo?








Diogo de Souza é colunista e escreve para a Folha Social