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05 agosto, 2013

A fragilidade da vida

Lições do mangueio


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Noite, bares lotados, mesas nas calçadas, Resende. A época era a que eu morava em Visconde de Mauá com meus três filhos. As calçadas cheias de gente, música em vários lugares. Eu havia passado umas duas horas entre as mesas, fazendo e vendendo os brochinhos de arame, estava saindo da última mesa do último bar. Na esquina um grupo se desentendia, bem no meu caminho em direção à ponte e ao centro da cidade. Dois caras começaram a se pegar, um deles sacou um 38, o outro não se intimidou. Era um cabo do exército, uns 22 anos, forte e decidido, conforme soube depois, pelo jornal. O cara deu um tiro pro alto, outro no chão. Mesmo assim, o cabo foi pra cima e se atracou com ele, que conseguiu se desvencilhar e deu mais um tiro, desta vez no peito. Eu estava a cinco passos, bem de frente pra cena, vi o furo da bala na camisa branca, o empurrão pra trás jogar o corpo a um metro de distância, no asfalto. Os olhos fecharam na hora que a bala entrou, os braços se esticaram pra baixo e ele caiu de costas. O corpo ainda quicou no chão e parou, imóvel. Várias pessoas correram na mesma hora, o do tiro subiu na garupa de uma moto e sumiu, a calçada foi esvaziando rápido, e eu ali, parado. As músicas foram sendo desligadas, gente pagando conta, indo embora andando, entrando nos carros. Alguns conhecidos do morto falavam de avisar não sei quem, discutiam o que fazer. Mas se afastavam, como todo mundo. Eu senti a morte na hora do tiro, na reação corporal do cara, numa vibração no ar, sei lá. Senti. Mas agora o corpo tava ali no chão, ninguém junto, olhei em volta, nada de polícia ainda. Desde a queda, ninguém se aproximou dele, ninguém conferiu se tava morto mesmo. Desconfiei da minha intuição, se estivesse vivo era preciso buscar ajuda ou pelo menos anunciar pros conhecidos. Fui até o cara, um garoto, forte, bonito. Coloquei o dedo no pescoço, nada de pulsação. Completamente morto. Eu sabia, mas por via das dúvidas, preferi sair sem essa na consciência. Dois caras, provavelmente conhecidos dele, me olhavam do outro lado da rua. Balancei a cabeça em negativa ao mesmo tempo que levantava e me afastava devagar, os caras se olharam e saíram andando, vi que um deles virou a cabeça, olhou ainda o corpo caído e saiu olhando o chão, de costas pro crime. Que tristeza, por alguma bobagem, na certa. Ou rixa antiga, não importa. Atravessava a ponte revendo a cena, em câmera lenta - o momento da bala entrando e a vida saindo congelava na memória - pensando e percebendo a fragilidade da vida. Parei no meio e olhei o rio, passando bem devagar. Como a corrente de acontecimentos na vida, todo o tempo em movimento. De repente lembrei que a polícia vinha por aí, eu estava próximo da “ocorrência” e tava com a grana do mangueio no bolso. Isso na minha condição de hippie solto no mundo, sem eira nem beira... no mínimo arriscava a grana, pra ser otimista. Voltei a andar e apressei o passo, sem olhar pra trás. A vários quarteirões, já no centro, vi passar o camburão disparado, os inevitáveis canos dos fuzis saindo pelas janelas, seguido por um outro carro, menor, de sirene ligada no meio do maior silêncio da noite. Coitado de quem estiver por perto.

(Eduardo Marinho)

Mangueio – 1- Pegar um painel de artesanato ou qualquer outra mercadoria e sair vendendo na mão, de mesa em mesa, de pessoa a pessoa.

2- Pedir, mendigar, arrumar no gogó, impregnar nos lugares ou nas orelhas, insistir até conseguir ou ser expulso. Esse é o mangueio micróbio.